Nesta fase final do nosso plano de Animação para toda a Congregação, e em preparação para o nosso próximo Capítulo Geral, embarcámos numa profunda reflexão sobre a nossa missão espiritana no mundo contemporâneo. Somos verdadeiramente fiéis hoje às intuições de Cláudio Poullart des Places e de Francisco Libermann, que viram na “evangelização dos pobres” o propósito fundamental da Congregação? Qual a melhor maneira de colocarmos o nosso carisma missionário, um dom precioso do Espírito Santo, ao serviço das diferentes Igrejas locais que servimos, tendo em conta os nossos recursos reais e muitas vezes limitados, e isto de um modo tal que possamos garantir uma vida comunitária genuína, que é parte integrante do nosso estilo de vida espiritano?

Para além de procurarmos uma visão e uma estratégia mais claras para a missão espiritana, em resposta aos sinais dos tempos em que vivemos, é igualmente importante que redescubramos a espiritualidade missionária que sustenta e dá vida e sentido a tudo o que fazemos. Muitos de nós realizamos a nossa missão hoje em circunstâncias muito difíceis e desafiantes em termos pessoais: a realidade do conflito, da insegurança e da ameaça diária da violência; a pobreza paralizante, a corrupção e a injustiça; o secularismo penetrante onde a nossa fé é corroída e minada; uma Igreja cuja credibilidade foi seriamente danificada pela revelação de sucessivos escândalos e pelas falhas na liderança; as circunscrições e comunidades divididas por tensões internas e desconfiança interpessoal. Precisamos de recursos internos profundos para nos sustentar e nos apoiar nestas situações e para nos ajudar a evitar que sejamos vítimas do pessimismo, do desânimo e da desilusão.
Libermann teve que enfrentar os limites do seu próprio temperamento nervoso e da doença debilitante, a dor da rejeição por parte do seu pai e críticas dolorosas de outros, entre os quais líderes da Igreja e gente próxima (cf. N.D. VI, 38 até M. Desgenettes; L.S.IV, 273 e seguintes até Le Vavasseur) e o fracasso devastador do seu primeiro empreendimento missionário. Sentiu-se incapaz enquanto líder de uma nova sociedade missionária e, por vezes, sentiu-se esmagado pelas tarefas com que se deparava (cf. L.S. IV, 275 a Le Vavasseur; N.D. VII, 5 a S. Libermann). No entanto, os seus profundos recursos espirituais interiores permitiram-lhe ouvir a voz do Espírito Santo no meio de tudo isto e continuar inabalavelmente o caminho pelo qual acreditava que o Senhor o tinha chamado. No centro da sua espiritualidade estava a convicção de que Deus está presente, não tanto em sinais ou eventos milagrosos, mas no meio da realidade em que vivemos – mesmo quando às vezes ele parece dolorosamente ausente – e é precisamente nessa situação que devemos ouvir a sua voz e discernir o seu chamamento.
Martin Buber indica que encontrar Deus na realidade da situação humana está enraizado na espiritualidade bíblica: “O judeu crente”, diz ele, “vive na consciência de que o lugar apropriado para o seu encontro com Deus está na situação de constante mudança própria da vida… uma e outra vez ele ouve a voz de Deus de maneira diferente na linguagem falada por situações imprevistas e alteradas”. Na mesma linha, o Arcebispo Ortodoxo Timothy Ware, refletindo sobre o papel do Espírito Santo na vida do cristão, escreve: “Não encontramos o Espírito Santo somente nalgum nível mais rarefeito… mas ele está presente em todos os eventos do nosso dia-a-dia. O verdadeiro “misticismo” é encontrar o extraordinário no comum. A minha “vida espiritual” é o mesmo que a minha vida do dia-a-dia vivida na sua totalidade… Este momento pelo qual estou a passar agora, esta tarefa familiar que eu realizo cada dia, esta pessoa com quem estou a falar neste momento – cada qual é de um valor infinito… espaço sagrado e tempo sagrado nada mais são do que este lugar e este momento, vistos pelo que são – como estando cheios do Espírito Santo”. A permanente tentação para todos nós é a dos dois discípulos no Evangelho que, após a morte de Jesus, partiram de Jerusalém para Emaús – a tentação de deixar para trás o lugar da nossa mágoa e desencanto em busca de um futuro alternativo e ilusório. Juntamente com São Lucas, Libermann nos recorda que o verdadeiro lugar de encontro com o Senhor ressuscitado é em Jerusalém, no meio do sofrimento aonde nos trouxe o nosso discipulado e que provavelmente preferiríamos evitar. É precisamente nesta situação que o Espírito vem, traz um significado e uma esperança renovados, e nos fortalece novamente para a nossa missão.
Como no caso de Maria e dos discípulos no cenáculo, a experiência dos nossos limites e impotência é, paradoxalmente, a condição necessária para a redescoberta da presença e do poder do Espírito nas situações mais improváveis. Libermann, baseado na sua própria experiência, falou frequentemente sobre a necessidade de aceitar serenamente os nossos limites, fraquezas e erros (exemplo: N.D. XII, 171 à Ir. Agnes). De maneira semelhante, ele reconheceu que existem situações e circunstâncias que estão fora do nosso controle; precisamos de saber como aceitar pacientemente obstáculos que não podem ser superados, pelo menos nas circunstâncias presentes, e esperar pelo “momento de Deus” (cf. N.D. IX, 328-9 à Comunidade em Dakar e Gabão). Em palavras que podiam ter sido ditas pelo próprio Libermann, Yves Congar escreve: “Se o meu Deus é o Deus da Bíblia, o Deus vivo… Então a minha ação consiste em me abandonar a Deus, que me permite ser a ligação entre a sua ação divina e o mundo e as outras pessoas… só tenho de me colocar a mim mesmo fielmente diante de Deus, e oferecer a totalidade do meu ser e das minhas capacidades, para que eu possa estar aí onde Deus me espera, ser o elo entre esta ação de Deus e o mundo”.
Essencialmente, Libermann chama-nos a uma visão contemplativa do mundo em que vivemos e da missão que nos é confiada. É um convite a nos vermos a nós mesmos, os nossos irmãos e irmãs, a nossa missão e o mundo a partir da perspectiva de Deus e não da nossa; implica libertarmo-nos das preocupações conosco mesmos e das nossas compulsões, dos nossos desejos de sucesso e reconhecimento, tomando serenamente consciência de que somos apenas pobres participantes numa missão que, em última análise, é de Deus e não nossa. Esta é precisamente a ideia da “união prática” ou “união na ação” na qual insistiu Libermann dirigindo-se aos seus missionários (cf. N.D. XIII, 699): é uma disposição contínua em toda a nossa atividade “fazer que subsistam em nós os mesmos sentimentos de Jesus Cristo” (Filipenses 2: 5), um reconhecimento de nossa dependência e expressão de confiança nas situações mais difíceis, seja a nível pessoal ou no meu ministério, um desejo persistente de alinhar a minha ação com a do Espírito Santo ou, simplesmente, permitir que o Espírito cumpra a sua missão por meio das minhas ações.
Que a vinda do Espírito, neste Pentecostes, renove a nossa esperança, a nossa confiança e a nossa coragem no meio das dificuldades e desafios da nossa missão e nos capacite de novo para o seu serviço.
John Fogarty, C.S.Sp.
Superior Geral